sábado, abril 04, 2009

Palavras que trabalham e palavras preguiçosas


3.ª Pergunta
Senhor Breton, há palavras que trabalham e há outras preguiçosas, que existem simplesmente no seu lugar na frase, e aí ficam, sem deslocações. Parece-me, no entanto, que a preguiça nas palavras - e coloco-lhe esta questão, senhor Breton -, que a preguiça não será tanto uma questão de imobilidade da palavra em si - mas sim de algo mais grave : o não fazer mover quem a lê, é essa a palavra indolente. Preguiça no verso é, pois, não fazer trabalhar o leitor.
Há versos cobertos de suor e esforço que só provocam no leitor uma leve compaixão, um oferecer de um lenço azul-claro para secar a cansada testa das palavras.
Se as palavras chegam já fatigadas ao leitor, este só fará delas algo se for muito bonzinho, bom coração, leitor de bons sentimentos. Ora, parece-me, e talvez concorde com tal afirmação, senhor Breton, parece-me, dizia (e o senhor Breton endireitou-se na cadeira e fez um ar sério), que os leitores de bom coração não existem, isto supondo que os humanos são os únicos com o destino virado para a literatura. Nunca vi um homem de bom coração a não ser nos versos maus, mas isto é apenas uma opinião, eventualmente amarga ou irónica, mas o que mais importa é saber exactamente onde começa um verso. Ou seja: será que o verso começa na primeira letra da primeira palavra desse verso? Não me parece. Há certos versos que começam no meio, numa palavra central, numa palavra que sofre mais do que as outras e que faz sofrer mais do que as outras. Ou começam, pelo contrário, numa palavra mais feliz, ou numa palavra com maior concentração de veneno.
É evidente, por exemplo, no verso "Elle passa sa nuit dans des latrines." o início é nas latrinas. Isto é: o verso começa com a palavra que o termina.
(...)
Uma rosa, apesar de bela, tem uma parte acastanhada e suja debaixo da terra. E um verso é como uma planta: é belo se investigar a terra que o destino lhe colocou por baixo. A beleza será pois uma profundidade e não uma estatura, muito menos uma cor ou uma forma. Concorda com este raciocínio, senhor Breton? Concorda com este modo de abrir os olhos?

Gonçalo M. Tavares, O Senhor Breton e a entrevista, pp. 19-2o

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